quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A miragem do sentido


"E eis que a meio caminho de minha vida me vi numa selva escura e tenebrosa..."
Assim, ao fazer a grande travessia, a aridez da paisagem pode ser avassaladora, e a sede torturante. E a incontornável necessidade de saciá-la uma tortura que atravessa o caminho. Para não sucumbir de vez, atravesso o consolo de oásis imaginários, onde fontes de águas límpidas refrescam a realidade crua.

A questão é: o quanto a necessidade mais atávica acaba por direcionar nossas explicações. Somos o que cremos, ou cremos para ser? Aquilo de que imperiosamente necessitamos nos aprisiona, ou caminhamos independente dele? A pergunta mais compungida é: o quanto a minha mais ardorosa necessidade de acreditar em que o Caminho faz sentido, não me leva desesperado em direção ao Sentido, construido exatamente para saciar essa sede?

O homem, sua maravilhosa e complexa máquina construida ao longo dos milênios de evolução da vida, parece ser sustentado por um Eixo sem o qual desabaria: a certeza de que há uma Ordem no Caos. Esta ordem está embutida no conjunto de valores coletivos compartilhados pelo seu grupo, sua raça. sua nação. Compartilhamento em que reconhecemos nossas crenças, ao mesmo tempo que a validam. A isso chamamos Cultura, uma estrutura interdependente de crenças, lógicas e explicações que orientam nossa interação com o Outro, e com o Mundo. Um mapa, consciente ou não, que nos fornece o caminho das pedras.

Gertz defende que a evolução das espécies fez sentido na trajetória humana até um ponto: aquele em que ele iniciou sua capacidade de simbolizar e construir a linguagem. A partir daí sua construção neuronal e subjetiva se deu dialeticamente, ou seja, se deu progressiva e concomitantemente. O paralelo que ocorre é a da evolução das espécies aeróbicas em sua inteiração com o oxigênio no curso dos milênios. Cultura e redes neuronais estão interligados, em uma relação de necessidade mútua, tal como vida, alvéolos e ar.

O homem sobreviveria sem tal Ordem? Sem uma estrutura complexa que lhe explica o mundo desde o berço? E que vem nos cavalos de tróias das palavras, dos conceitos, da língua? Ou o Sentido em que é educado a crer o protege de seu mêdo da morte, e do absoluto non sense com que os atomos se chocam e a vida transcorre?

Como as miragens refrescantes encontradas pelo caminhante no deserto o impedem de sucumbir fatalmente, dando-lhe sobrevida para ir adiante, a Ordem em que necessitamos crer, e que foi por nós mesmo construida, também impede o colapso que a ausência de Sentido provocaria em nossa Alma. E à ela nos agarramos desesperados, esperançosos que nos ajude a impedir que afundemos no Mistério insondável.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O norte do peregrino


Desde remotas eras o peregrino suscita emoções não negligenciáveis; ora o terror despertado pelo estrangeiro deconhecido, portador de perigos, que sempre caracterizou as aldeias, ora o possível deus que caminha sobre o mundo e agora bate em sua porta, a justificar a hospitalidade grega. A idéia da peregrinação coloca em movimento camadas arqueológicas da alma humana. Parece movê-lo para as margens de uma lembrança central perdida, ou à beira de algum abismo, em que seus antigos mêdos se reavivam.

É possível que essa mobilização se ligue ao profundo e longo processo em que o homem construiu a cultura. Explicações do mundo com que alicerçou as bases em que possa instalar-se confortável, e esquecer seu profundo medo do caos. Não seria esse um dos traços a marcar em brasa a nossa humanidade: o pavor diante a falta de sentido? Seria fato que a busca de sentido caminho junto, por estas eras, da construção do verbo, do símbolo e das descrições de um mundo palatável? Aos sentidos, pelo menos?

Talvez o peregrino suscite em nós emoções que renegam esse anseio por estabilidade? Ao propor um entregar-se a0 fluxo, nos aproximamos de algum modo da vida animal, esta ânsia por ser que parece algum dia ter nos abandonado, e da qual nostalgicamente lembramos. E que provoca aversão à toda a segurança que o estar insinua produzir.

Peregrinar então sugere estar em um tenso centro de nossa alma, dividida entre nossa natureza que se reconhece no livre jorro dos ciclos em mutação e os sentidos apreendidos por gerações ocultas, mas que encontramos enquadrando o mundo, quando a mente se encontra pronta para começar a especular e refletir sobre as condições de nossa passagem por este mundo