terça-feira, 28 de abril de 2009

O criador, a criatura e a criação



A consciência de que somos múltiplos pode soar como um sinal de alarme. Sentir, mais que compreender, que aquele Eu Velho Conhecido é apenas parte, que existe também Outro Lugar que se observa, abre importante perspectivas: 1°) para o auto conhecimento; e 2°) para traçarmos uma trajetória mais eficiente em direção a uma existência mais plena.

Nenhuma outra contribuição é mais importante para a miopia que caracteriza a caminhada da maior parte da humanidade, no curso de sua vida, que as verdades estabelecidas. As certezas construidas, por nós e pelas balizas culturais antes de nós, nos acomodam confortáveis em nossos sofás. Podemos nos conformar com nossas vidas cheias de dentes, "esperando a morte chegar". (Saudoso Raul Seixas!) Caminhamos a ilusão de uma estrada pavimentada e sinalizada, bem mais fácil de ser seguida do que aquela que somos obrigados a debastar diariamente.

Nós, como a Estrada, podemos ser apenas uma Construção! Ainda pior, construidos por outros, antes de nós mesmos. Muito diferentes de uma trajetória percorrida em plena atenção, tal como exigidas pelo improviso.

Quem eu sou? E quem pergunta? Quem é quem? Ou quem é Eu? E qual a importância disso?

A primeira grande importância é nos mostrar a construção. Em vez de hipnotizados pelo cenário, no enlevo da obra, suas vísceras nos permitem o distanciamento. Olhamos as cordinhas do marionete, as roldanas por trás do homem voador, da bailarina, o ponto por tráz da fala. Sorvemos a obra, mas sabemos distinguir o criador, a criatura, a criação.

Não podemos nos contentar com as cortinas, com as nuvens pintadas no pano de fundo do palco. Queremos olhar além, queremos fazer uma travessia honesta, aspirar a seus perfumes verdadeiros. Queremos andar pelo palco chamando aquilo de palco; queremos nos deliciar com os personagens sabendo o que são: personagens.

Só então posso transitar pelos vários eus, que são minhas verdades, sem que nenhum detenha este monopólio. Só então posso sobrevoar em perspectiva por esta unidade, que agora a custo livra-se de suas primeiras peles. Descristalizado, posso me perder na vastidão do Mistério ainda mais plenamente Sendo. Sem nada ser, me permito a minha humilde verdade.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O Eu, o Si Mesmo e os muitos deuses


Você alguma vez já se olhou no espelho e tomou consciência do desconhecido diante dos olhos? Ou se estranhou falando "Eu", pela primeira vez se dando conta de que havia ali uma entidade não tão óbvia, como anos de automatismo faziam crer?

Somos compostos de multiplos heterogêneos orbitando em torno de "algum" núcleo. Somos acostumados a chamar algo que supomos ser este núcleo de Eu, e nos identificamos total e irrefletidamente com ele. Alguns tem a oportunidade da experiência que coloca esse Eu em perspectiva, qundo finalmente questionamos o que é sujeito e o que é objeto desta fala. Quem é o que denomina? Quem é o que fala Eu? Sou Eu mesmo? Ou às vezes, ou quem sabe nunca...

Há uma ou mais instâncias do Si Mesmo que emanam a fala, mas são as mesmas que emanam o sentimento, a emoção, a intuição?

Poderia se perguntar qual a importância desta questão para a espiritualidade. Tomemos o crente que entende Deus como "uma energia", mas reza para o velhinho. Qual das atitudes expressa o Outro com quem dialoga? Porque a elaboração teológica mais sutil e complexa não retiram do velhinho a verdade daquela crença. O mais sofisticado arcabouço intelectual não forma a base real que norteará as ações e interpretações do devoto; suas expectativas na relação com o divino continuarão sendo a do menininho ajoelhado na beirada da cama.

A grande tarefa na dantesca jornada do conhecimento sempre será a de mapear o mais inóspito dos territórios: o interior da alma que busca. São tais olhos, ouvidos e pés que dão a tônica da caminhada, e as interpretam pela única perpectiva possível: a sua. Preciso conhecer o Eu que olha, que age e reage, que imagina e deseja, a assim pincela a gosto tão pessoal a paisagem.

Vemos assim que há uma intransponível tensão entre a criança e o intelecto, entre o Eu no meio de Eus, entre a lingua e o coração, entre a crença que aceito e a crença que se impõe quase à revelia. Não me resta senão sobrevoar as muitas perspectivas - quando e se me liberto da presença daquele Eu até então inquestionado, para entendê-lo como parte e não como o único núcleo possível.

A aragem que sopra pelas frestas de libertação tão inesperada quanto possível é que torna possível alçarmos vôo em direção a espiritualidades mais vastas e maduras.